segunda-feira, 22 de outubro de 2012

Casamento e Divórcio na Perspectiva Civil Constitucional

Paulo Hermano Soares Ribeiro e Edson Pires da Fonseca

CASAMENTO E DIVORCIO CIVIL CONSTITUCIONAL

Nenhuma lei pode compelir casais felizes a se divorciar.
Nem mesmo a Constituição opera no terreno do desejo.
Antes de principiar esse livro com as razões que oferecemos para as conclusões que extraímos é imperioso estabelecer, como premissa irrecusável, que a FAMÍLIA deve ter sempre a melhor proteção do Estado e a mais cuidadosa atenção de toda gente, principalmente daqueles que a protagonizam. A banalização da família é falta grave, um plantar de tragédia, e mais, é ignomínia que depõe contra a sociedade que a permite ou estimula. É preciso sempre repetir essas coisas, como um triságio de fé, para que os acertos da cultura não sejam usados em desfavor dela.
É na família que a pessoa nasce, fruto do encontro e da convergência, para encontrar viabilidade para seu corpo e seu espírito. No ambiente familiar são construídos, reproduzidos, ampliados e consolidados, dentro do abraço afetuoso e comprometido dos que se amam, as delicadezas da moral, as sutilezas da ética, a indispensabilidade da convivência pacífica, e a irrecusável higidez da justiça.
Casamento é uma das formas de constituição da família, e esta não é produto da Lei, nem de um pedaço de papel coberto de formalidades e solenidades, mas resultado da necessidade que tem muitos nomes e habitação fixa dentro de nós. Não há lei que crie a FAMÍLIA, nem há lei capaz de dissolvê-la. Somente o afeto, no abstrato e ainda inexplicável plano do espírito, pode fazê-lo. Por isso nosso enunciado primeiro: nenhuma lei pode compelir casais felizes a se divorciar, nem mesmo a Constituição revoga a lei do desejo.
Contudo, historicamente, o legislador tem imiscuído na seara que não lhe pertence, normatizando – de forma dura e intransigente até – o que não é normatizável.
A sociedade brasileira tem a experiência do casamento como exclusivo sinônimo de sacralidade, correção e moral nas relações entre homem e mulher, tanto que, durante um largo período, relacionamentos que não contassem com o selo legitimador do matrimônio formal condenavam seus partícipes à ilegitimidade. Essa pecha contaminava os filhos que deles proviessem, marcando gerações com o estigma da marginalidade. O casamento monopolizava o liame virtuoso, e, as relações fora do casamento se confundiam com o pecado. Este sistema normativo dava a latitude e a longitude de uma cultura tremendamente influenciada pelo Direito Canônico naquele momento histórico.
A sacralidade trazia consigo a mística característica da indissolubilidade do casamento, atributo com sede constitucional, mas de raízes religiosas, que determinava a união vitalícia, independentemente da qualidade de família produzida ou da felicidade de seus protagonistas. As pessoas que, por qualquer razão, assistissem seu casamento ruir no plano fático, jamais poderiam se desligar do outro no plano formal. A indissolubilidade afrontava o amor, porque obrigava as pessoas a permanecerem juntas, não porque se amavam, mas porque a Lei assim o determinava.
A situação jurídica era, no mínimo, extravagante: de um lado não se estava mais casado, porque rompida a sociedade conjugal, mas de outro, ainda se estava casado, porque o vínculo conjugal permanecia íntegro.
O casamento que terminava pelo desquite, continuava a existir até que uma das partes encontrasse o óbito. Essa realidade subsistiu até o final da década de 1970.
Não é difícil perceber o quanto é perversa a separação sem o divórcio. Se a intenção é proteger o casamento, impedindo sua ruptura, a mera separação frustra este desiderato, porque não admite a constituição de duas novas famílias. O divórcio que rompe o vínculo, por sua vez, tem o condão de permitir um segundo casamento, sendo, portanto, singularmente muito mais a favor do casamento que a separação, que apenas rompe a sociedade.
A propósito, Friedrich Engels, nos idos de1884, já sustentava que “se o matrimônio baseado no amor é o único moral, só pode ser moral o matrimônio onde o amor persiste”, e quando o afeto desaparece ou é substituído por um novo amor apaixonado, “o divórcio será um benefício, tanto para ambas as partes como para a sociedade”.
A possibilidade jurídica do rompimento vincular do casamento somente ganhou espaço no ordenamento jurídico brasileiro em 1977, via Emenda Constitucional nº 9 que alterou o parágrafo 1º do art. 175 do texto constitucional então vigente, admitindo que o casamento pudesse “ser dissolvido, nos casos expressos em lei, desde que haja prévia separação judicial por mais de três anos”. No mesmo ano, veio a lume a Lei nº 6.515, de 26/dezembro/1977, alcunhada de Lei do Divórcio, que regulou os casos de dissolução da sociedade e do vínculo conjugal.
Porém, o legislador, de costas para o futuro, continuou aliando a viabilidade da separação à conduta culposa que pudesse ser atribuída a uma das partes, compelindo que o debate envolvendo a intimidade do casal ocorresse no espaço público dos tribunais. Essa circunstância foi alvo de resistência e reiterado combate pela doutrina.
A Constituição Federal de 1988 promoveu uma ampliação nas possibilidades de divórcio em seu art. 226, § 6º, texto reproduzido no artigo 1.580 do Código Civil de 2002. O divórcio, então, poderia ocorrer após prévia separação de fato por mais de dois (2) anos, ou após um (1) ano de separação formalizada. Inobstante, a questão da prova da culpa para as separações litigiosas permaneciam no ordenamento.
A Emenda Constitucional nº 66/2010 (EC 66/2010), ao dar nova redação ao artigo 226, § 6º da CF/88, suprimiu os requisitos do lapso temporal e prévia separação (judicial ou extrajudicial) para o divórcio, o que tornou essa última obsoleta e vazia de fundamento no ordenamento jurídico.
A EC 66/2010 promoveu a facilitação para o fim de casamentos malsucedidos, e essa parece ser sua finalidade mais aguda, e o fez, apenas retirando os obstáculos existentes. Não houve um regramento procedimental novo, apenas o esquecimento do arcaico sistema dual existente. A liberdade das pessoas de se casarem foi ampliada para a liberdade de não permanecerem casadas.
E essa, provavelmente, é a mais contundente razão do divórcio se fazer presente nos ordenamentos jurídicos da maior parte do planeta: as pessoas desde sempre, mas com muito mais vigor nos tempos modernos, estão transtornadas pelo desejo de liberdade. Liberdade de amar e constituir família, e se não der certo uma vez, amar de novo e constituir família de novo.
A tutela constitucional, antes expressa para a separação prévia, passa a contemplar somente a hipótese de divórcio, com reflexos imediatos e inevitáveis sobre as normas hierarquicamente inferiores. A não recepção das normas infraconstitucionais pela nova ordem revoga-as.
A presente obra trata da novidade legislativa, analisando, discutindo e oferecendo soluções para indagações que surgem e para os desafios que a assimilação do novo paradigma apresenta, principalmente quando confrontado com os dogmas que ainda assombram o Direito de Família contemporâneo. Para sua elaboração foi realizada intensa pesquisa na legislação, doutrina, jurisprudência, anais do Congresso e ouvidos os arquivos de áudio referentes aos debates e audiências públicas que precederam a aprovação do Projeto de Emenda Constitucional.
O Capítulo I - Das Famílias - apresenta uma síntese do panorama normativo brasileiro sobre o Direito de Família, sua constitucionalização expressa a partir da Constituição Federal de 1988, mais considerações sobre alguns dos arranjos familiares possíveis na multiplicidade plural do Direito de Família moderno.
O Capítulo II examina o casamento na perspectiva do legislador civil, trazendo noções conceituais, natureza jurídica, pressupostos, características, impedimentos, causas suspensivas, habilitação, celebração, casamentos em situações especiais, invalidade do casamento e questões incidentais.
O Capítulo III examina o casamento entre pessoas do mesmo sexo, com base nas decisões recentes do Supremo Tribunal Federal ao julgar a ”Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 4277″ e a “Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 132″ recebida como ADI, e ainda no voto proferido pelo Ministro do Superior Tribunal de Justiça, Luiz Felipe Salomão, no julgamento do Recurso Especial nº 1.183.378 - RS (2010/0036663-8), onde se alegava ofensa ao art. 1.521 do Código Civil de 2002.
O Capítulo IV trata da face patrimonial do casamento debatendo os regimes de bens disponíveis explícita, e implicitamente, no ordenamento.
O Capítulo V traz uma minuciosa evolução histórica do tema no Brasil desde a Colônia (1500...), passando pelo Império (1822...) até a República (1889...), examinando disposições legais nas Ordenações Filipinas, no período anterior ao codificado, a perspectiva do legislador de 1916, as Constituições até a Emenda Constitucional n. 09/1977. Por fim, a Constituição Federal de 1988 e a tramitação e promulgação da Emenda Constitucional n. 66/2010.
O Capítulo VI examina a Emenda Constitucional 66/2010 na perspectiva do Direito Constitucional, com análise da oportunidade da EC e resumo de sua tramitação.
O Capítulo VII apresenta o tema na perspectiva do Direito Constitucional, examinando a constitucionalização do direito, os direitos fundamentais e sua compreensão horizontal, o direito intertemporal e o reflexo da Emenda Constitucional 66/2010 na legislação infraconstitucional.
O Capítulo VIII trata do novo instituto do Divórcio, mediante a apreensão das consequências produzidas pela EC 66 na doutrina do vínculo e da sociedade conjugal, nos prazos previstos na legislação infraconstitucional, no destino do instituto da separação, no esvaziamento da culpa e questões incidentais.
Por fim, o Capítulo IX examina a novidade na perspectiva da desjudicialização do divórcio.
A pesquisa foi realizada com olhos voltados para a compreensão da modificação ocorrida no plano constitucional e os irresistíveis reflexos na legislação infraconstitucional.
Paulo Hermano Soares Ribeiro
Este livro trata do casamento e do divórcio no direito brasileiro. Nos últimos tempos estes dois institutos passaram por profundas modificações. Decisão recente do STF reconheceu a possibilidade de união estável homoafetiva. Com isso, afastou-se qualquer óbice jurídico para a conversão destas uniões estáveis em casamento. O divórcio também não ficou imune às mudanças. Inicialmente, passou por um processo de desjudicialização; mais recentemente, com o advento da Emenda Constitucional 66/2010, deixou-se de exigir que ele fosse precedido de separação judicial ou de fato.
O tratamento que esta obra dá a esses temas está em consonância com o novo paradigma do direito civil constitucional, que reconhece a força normativa da Constituição, tratando-a como genuína norma jurídica a irradiar seus efeitos por todo o ordenamento jurídico. Esta abordagem reconhece a fluidez da dicotomia entre direito público e privado, insuficiente para lidar com as exigências do direito contemporâneo.
A constitucionalização do direito civil pode ser sentida sob dois ângulos distintos e complementares. De um lado, diz respeito à inclusão dos princípios vetores do direito civil na Constituição Federal de 1988. À medida que o cerne do direito civil é inserido no texto constitucional não há como negar que houve um processo de constitucionalização. Mas não é só. De outro lado, a constitucionalização se relaciona com a irradiação da principiologia constitucional por todo o arcabouço normativo, inclusive, é claro, pelo direito civil. Elementos clássicos do direito privado, como autonomia da vontade, pacta sunt servanda e propriedade privada devem ser relidos à luz da dignidade da pessoa humana, princípio norteador de todo o sistema jurídico brasileiro. Padece de invalidade insanável a norma jurídica contrária à dignidade humana e aos demais valores albergados na principiologia constitucional.
Dentro da seara civilista talvez seja o direito das famílias quem mais foi influenciado por esse novo paradigma da constitucionalização do direito. O modelo tradicional de família, ligado exclusivamente ao casamento, foi superado pela Constituição de 1988. Reconhecem-se hoje outras formações familiares, como as monoparentais, as oriundas de uniões estáveis, as homoafetivas, as recompostas etc. Não é sem razão que atualmente se fala em direito das famílias e não mais em direito de família.
Ressalva-se, todavia, que a constitucionalização do direito privado não pode ser levada ao extremo, sob pena de corroer por completo as bases deste milenar ramo do direito positivo. Em alguns pontos a lógica do direito público é completamente intransponível para a esfera do direito privado. Essas nuanças, é certo, devem ser respeitadas. Mas uma coisa é inegável: não há mais espaço para visões ortodoxas do direito civil que, saudosas da Escola da Exegese, interpretam o direito positivo, aí incluindo a Constituição, à luz do Código Civil, em completa subversão da ordem normativa.
Evidenciado o marco teórico ao qual se filia esta obra, cumpre ressaltar que se espera com ela propiciar aos leitores visão atualizada e crítica do casamento e, em especial, do divórcio. Esclarece-se, desde logo, que os autores aderem à doutrina segundo a qual a Emenda Constitucional n. 66/2010 revogou a separação. Ressalvadas as excepcionais hipóteses de transição, este secular instituto não mais existe entre nós.
Com o máximo respeito aos posicionamentos em sentido contrário, estamos convencidos da correção do entendimento aqui adotado. Em que pese a firme adesão em favor da revogação da separação, os argumentos contrários aos nossos receberam a atenção e o destaque merecidos. Cada um deles foi objeto de detida análise, inclusive para a formação de nossa própria convicção sobre o tema.
Firmado o nosso posicionamento, buscou-se, do modo mais minucioso possível, refutar os argumentos favoráveis à manutenção da separação no ordenamento jurídico. Além de argumentos de direito intertemporal, foram colacionados outros de ordem hermenêutica, histórica e lógica.
Oportuno salientar que não se quis produzir um livro exaustivo sobre o casamento e o divórcio, espaço já bem ocupado em nossa literatura jurídica por outras obras. Objetivou-se, na verdade, apresentar ao leitor, de forma crítica, os aspectos mais relevantes destes temas, relidos a partir da ambiência do direito civil constitucional.
Espera-se que a obra contribua, ainda que singelamente, para o debate de tão candentes temas, propiciando leitura atualizada e contemporânea do casamento e do divórcio.
Por fim, é chegada a hora de convidá-lo à leitura! Esperamos, sinceramente, que o trabalho lhe seja de alguma valia. Como toda obra humana, as ideias apresentadas neste livro estão em permanente construção e reconstrução, de maneira que as críticas e sugestões são esperadas e muito bem-vindas!
Boa Leitura!
Edson Pires da Fonseca
4ª capa
A família deve ter sempre a melhor proteção do Estado e a mais cuidadosa atenção de toda a sociedade, embora não seja um produto da Lei. No ambiente familiar são construídos, reproduzidos, ampliados e consolidados, sob o abraço afetuoso e comprometido dos que se amam, as delicadezas da moral, as sutilezas da ética, a indispensabilidade da convivência pacífica, e a irrecusável higidez da justiça. Banalizar a família é falta grave, um plantar de tragédia, uma ignomínia que depõe contra a sociedade.
O casamento é uma via que formaliza a família que existe, e o divórcio a que desformaliza uma parte da família que não resistiu e se perdeu. Em ambos os casos são apenas formalidades no curso da vida.
A presente obra examina com serenidade o casamento, o divórcio e as questões correlacionadas, sob as luzes da EC 66/2010 e da novel jurisprudência e doutrina em formação a partir dela. A pesquisa foi realizada com olhos voltados para a compreensão da modificação ocorrida no plano constitucional e os irresistíveis reflexos na legislação infraconstitucional.

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